SOBRE RELIGIÃO, SOBRE ESPIRITUALIDADE. SOBRE MIM NO PERCURSO.

O que me vêm são as lembranças do escuro no quarto, os barulhos da casa e a voz doce e segura de minha mãe no cômodo ao lado recitando uma oração para que dormíssemos bem, “santo anjo do senhor, meu zeloso guardador…” O que me vêm, o conforto sentido a partir e a vontade de continuar. Uma liberdade dentro das palavras, entremeadas na imagem da minha mãe a quem atribuía serenidade e paz nas suas ações. Mais tarde, ao crescer e alfabetizar, o caminho comum e previsto era estudar nalgumas tardes na igreja matriz, uma edificação imponente em frente à praça central, meio castelo medieval, meio conto de fadas, meio casa de Deus. Estudar para a primeira comunhão. Eu achava fria a igreja, embora dedicasse muitos minutos aos afrescos. Observá-los era rezar, mais do que decorar o Pai Nosso ou o Ato de Contrição na salinha atrás do altar com a irmã Maria. Preferia espreitar as galinhas que o padre criava no pátio. Preferia imaginar o padre sem a batina, tomando café da manhã num dia de inverno, cachecol no pescoço e voz de gripe. A missa era um ritual e não conversava com ele. Gostava de fazer fila para a eucaristia, mas temia que meus dentes mastigassem a hóstia. Ouvira de alguém que podia ser que o sangue de Cristo escorresse. Ficava com medo de um impulso. Passou. Depois da comunhão o bom era domingo de sol e roupa nova feita para a missa, o bom era furar as festas de outras primeiras comunhões. Tomar fanta e comer bolo com merengue. Tudo isso antes do almoço. Coisas de criança do interior. Das missas, restou a sonoridade dos sinos e algumas canções entoadas por corais de mulheres solteiras e afinadas. Eu crescera e o que a casa medieval me possibilitou, não bastou. Tinha muito enquadre. Levantar, ajoelhar, fazer o sinal da cruz, o temor e o pecado. Não. Na minha cabeça a doutrina aprisionava. Mais tarde, nas aulas do pré-vestibular os professores de história selaram o mito, deram a letra que me faltava para sair de vez de dentro da igreja. A religião servia ao Estado que amalgamava-se a ela num conluio demoníaco. Só podia ser. Em nome dela, dele, quanta coisa, crime, atrocidade, fogueira e desrazão. Mas como preencher o espaço entre o que eu era, achava que era, e o que acreditava ser maior do que eu e abarcante de todos? Conheci um pouco de filosofia, do andarilho Buda, li poetas doidos e aprendi a respirar fora dos templos. Era muito melhor. Fazia mais sentido. As cores das paredes das igrejas na natureza vibravam mais e eu ia. Até chegar em Ouro Preto e adentrar outra vez nos templos. E perceber que o sagrado evocado dentro, estava fora; mas também estava em mim. Sobretudo, a minha casa era eu mesma e o universo.

A religião é somatório de regras a que as pessoas se submetem, quando precisam se convencer de algo que nem bem sabem o que é.

A espiritualidade é um mergulho no coração, extraindo dele a noção de que o indivíduo e tudo o que o cerca e abarca, é o próprio coração.

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